segunda-feira, setembro 17, 2012

José Régio nasceu há 111 anos

(imagem daqui)

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, (Vila do Conde, 17 de setembro de 1901 - Vila do Conde, 22 de dezembro de 1969) foi um escritor português que viveu grande parte da sua vida na cidade de Portalegre (de 1928 a 1967). Foi possivelmente o único escritor em língua portuguesa a dominar com igual mestria todos os géneros literários: poeta, dramaturgo, romancista, novelista, contista, ensaísta, cronista, jornalista, crítico, autor de diário, memorialista, epistológrafo e historiador da literatura, para além de editor e diretor da influente revista literária Presença, desenhador, pintor, e grande colecionador de arte sacra e popular. Foi irmão do poeta, pintor e engenheiro Júlio Maria dos Reis Pereira.


Romance de Vila do Conde

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Já me ponho a suspirar.

Vento Norte, ai vento norte,
Ventinho da beira-mar,
Vento de Vila do Conde,
Que é a minha terra natal!,
Nenhum remédio me vale
Se me não vens cá buscar,
Vento norte, ai vento norte,
Que em sonhos sinto assoprar...

Bom cheirinho dos pinheiros,
A que não sei outro igual,
Do pinheiral de Mindelo,
Que é um belo pinheiral
Que em Azurara começa
E ao Porto vai acabar...,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale!
Nenhum remédio me vale,
Se te não posso cheirar...

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Mais nada posso lembrar.

Bom cheirinho dos pinheiros...,
Sei de um que quase te vale:
É o cheiro da maresia,
- Sargaços, névoas e sal -
A que cheira toda a vila
Nas manhãs de temporal.
Ai mar de Vila do Conde,
Ai mar dos mares, meu mar!,
Se me não vens cá buscar,
Nenhum remédio me vale.
Nenhum remédio me vale,
Nem chega a remediar…

Abria, de manhãzinha,
As vidraças par em par.
Entrava o mar no meu quarto
Só pelo cheiro do ar.
Ia à praia, e via a espuma
Rolando pelo areal,
Espuma verde e amarela
Da noite de temporal!
Empurrada pelo vento,
Que em sonhos ouço ventar,
Ia à praia e via a espuma
Pelo areal a rolar...

Espuma verde e amarela
Das noites de temmporal,
Quem te viu como eu te via,
Se te pudera olvidar!
E ai não me posso curar,
Nenhum remédio me vale,
Se te não tenho nos braços,
Se te não posso beijar…

Vila do Conde espraiada
Entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Passo a tarde a divagar…

Até Senhora da Guia
Me deixava ir devagar,
Até Senhora da Guia,
Que entra já dentro do mar,
Como uma pomba que as ondas
Receassem de levar;
Talvez como uma gaivota
Colhida num vendaval…
Ou rosa branca, trazida
Quem sabe de que lugar,
Que embaraçando nas pedras,
Ficasse ali, sem murchar,
O pé metido no rio,
A flor já n’água do mar.

Lá de cima do seu monte,
Sobre o fundo do pinhal,
Senhora Sant’Ana, ao longe,
Parece um lenço a acenar.
Convento de Santa Clara,
Que vulto fazes no ar,
Que aos marinheiros no mar
Deitas o «pelo sinal»!
E o sol desmaia na cal
Da capela a branquejar
Da Senhora do Socorro,
Onde sonhei me ir casar…

Da banda de lá do rio,
As gaivotas a voar
Sobre Azurara se esfolham
Como um grande roseiral!

Lembranças da minha terra,
Da minha terra natal,
Nenhum remédio me vale
Se me não vindes buscar!
Nenhum me pode salvar,
Morro em pecado mortal…

Vila do Conde, espraiada
entre pinhais, rio e mar!
- Lembra-me Vila do Conde,
Sinto os olhos a turvar…

Ia até Poça da Barca,
Meu muito amado local,
(E quem diz Poça da Barca
Diz Caxinas, sua igual)
E parava a olhar de longe,
Estátuas de bronze a andar,
As belas gentes do mar…
Parava a olhar o estendal
Das águas a rebrilhar,
E o arco-íris das cores,
Cada qual mais singular,
Que à tarde, pelos céus fora,
Se entornavam devagar…  
Caía a noite, e eu, parado,
Via, subindo no ar,
A lua juncar as ondas
De espadanas de luar…

Duma vez, estava eu triste,
Senti que o Anjo do Mal
Vinha para me tentar!
Caio de bruços na areia,
Ponho as mãos, e, sem rezar,
Aguardo que Deus me valha,
Me não deixe desgraçar…
Foi então que ouvi, distinta,
Distinta!, posso-o jurar,
Posto vagarosa, grave
Do seu repouso eternal,
A voz de Ana, que partira
Lá para melhor Lugar,
Do fundo do seu coval
Cantar-me o velho cantar:
«…Tomou-o um Anjo nos braços,
Não no deixou afogar»…

Nenhum remédio me vale,
Ou sou eu que não sei qual,
Se me não levam depressa
A ver o extenso areal
Onde se davam mistérios,
Que eu sabia decifrar…

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar...
- Lembra-me Vila do Conde,
Não me posso conformar…

Aquela funda toada,
Por toda a vila a toar,
Nas negras noites de inverno
Me vinha à cama acordar.
Vinha do cabo do mundo…?
Vinha do fundo do mar…?
Vinha do céu, ou do inferno?
Vinha de nenhum lugar…?

De olhos abertos no escuro
Me estarrecia a escutar…
E o meu gosto de a sondar
Que bem me fazia, ou mal!

Pela doçura outonal
Das tardinhas de Setembro,
Vai e vem, que bem me lembro!,
Como sabia embalar!
Vinha de longe, de longe,
Soturna e familiar,
Cada vez mais se achegando
Para se logo afastar…
Mas que viria dizer-me,
Que me diria, afinal,
Aquele canto fatal
Das ondas sempre a rolar…?  
Fechava os olhos, sonhava…
Ai! Nem me quero lembrar!

Mas sei de um som quase igual
A que o posso comparar:
O som do vento rolando
Nas copas dum pinheiral…
Pinhal do Corgo, seguido
De outro mais longo pinhal,
E esseoutro seguido de outro
Té onde a vista alcançar,
Como te posso olvidar
Se é na minh’alma, afinal,
Que chora, como num búzio,
Teu canto irmão do do mar…?

Fechava os olhos, sonhava…
Caía num meditar
Que era pairar noutros mundos…
Ai! Nem me quero lembrar!

Não quero, e nada mais lembro,
Nada me pode agradar,
Nada alcança, distrair-me,
Nada me vem consolar,
Nenhum remédio me vale,
Nenhum me pode salvar,
Nenhum mitiga este mal
Que eu gosto de exacerbar,
Morro em pecado mortal,
Sem me poder confessar…,
Se me não levam depressa,
Depressa! estou sem vagar,
A tomar ar! o meu ar
Da minha terra natal.

Vila do Conde, espraiada
Entre pinhais, rio e mar…

in Fado (1941) - José Régio

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