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terça-feira, março 26, 2024

Hoje é dia de recordar Walt Whitman...

 

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

 
   
Portugal-Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
    
De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!
   
Cantor da fraternidade feroz e terna com tudo,
Grande democrata epidérmico, contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as ações, bacanal de todos os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os objetos de fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas solares, paneleiro de Deus!
   
Eu, de monóculo e casaco exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse, nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo, sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
   
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
  
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma ereção abstrata e indireta no fundo da minha alma.
   
Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo.
    
Meu velho Walt, meu grande Camarada, evoé!
Pertenço à tua orgia báquica de sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu, Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás contente com isso!
    
Nunca posso ler os teus versos a fio... Há ali sentir de mais...
Atravesso os teus versos como a uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a atividade humana e mecânica
Nos teus versos, a certa altura não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé sobre a terra natural,
Ou de cabeça p’ra baixo, pendurado numa espécie de estabelecimento,
No teto natural da tua inspiração de tropel,
No centro do teto da tua intensidade inacessível.
  
Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as portas...
Sim — eu franzino e civilizado, meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força, porque quando quero passar sou Deus!
   
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas emoções!
Daqui p’ra fora, políticos, literatos,
Comerciantes pacatos, polícia, meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste momento sou EU!
   
Que nenhum filho da puta se me atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou não, não é contigo, deixa-me ir...
É comigo, com Deus, com o sentido-eu da palavra Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana... Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos, pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do chicote que vai bater,
De me (...)
De ser a cadela de todos os cães e eles não bastam,
De ser o volante de todas as máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o deslocado, o acabado,
E tudo para te cantar, para te saudar e (...)
Dança comigo, Walt, lá do outro mundo esta fúria,
Salta comigo neste batuque que esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
E (...)
Em tudo, por tudo, à roda de tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo maelstroms na alma...
  
Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos lá prá frente... Não faz diferença...
Vamos lá prá frente
Vamos lá prá frente sem ser para parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem meta! Que importa?
Pum! pum! pum! pum! pum!
Agora, sim, partamos, vá lá prá frente, pum!
Pum
Pum
  
Heia...heia...heia...heia...heia...
Desencadeio-me como uma trovoada
Em pulos da alma a ti,
Com bandas militares à frente [...] a saudar-te...
Com um [...] contigo e uma fúria de berros e saltos
Estardalhaço a gritar-te
E dou-te todos os vivas a mim e a ti e a Deus
E o universo anda à roda de nós como um carrocel com música dentro dos nossos crânios,
E tendo luzes essenciais na minha epiderme anterior
Eu, louco de [...] sibilar ébrio de máquinas,
Tu célebre, tu temerário, tu o Walt — e o [...],
Tu a [sensualidade porto?]
Eu a sensualidade com [...]
Tu a inteligência (...)

 


Álvaro de Campos

sexta-feira, março 22, 2024

Reis Ventura nasceu há 114 anos

(imagem daqui)
     
REIS VENTURA - Calvão, Chaves, 23 de março de 1910 - Oeiras, 29 de janeiro de 1988
 
Reis Ventura é o pseudónimo literário de Manuel Joaquim dos Reis Barroso. Tendo começado a sua vida pela Ordem de São Francisco, onde professou com o nome de Vasco Reis e recebeu ordens sacras, estudou Teologia em Espanha, tendo seguido depois para Moçambique como missionário. Ali abandonaria não só os franciscanos como as próprias ordens sacerdotais, tendo regressado a Lisboa onde estudou então na Escola Superior Colonial. Em 1938 seguiu para Angola, onde trabalhou primeiro como funcionário administrativo e, finalmente, como empregado da companhia de petróleos daquela então colónia. Regressou a Portugal em 1975, tendo-se fixado em Lisboa. Estreou-se como poeta com o volume A Romaria, que, em 1934, recebeu o "Prémio Antero de Quental" do Secretariado de Propaganda Nacional, ex-aequo com a Mensagem de Fernando Pessoa. Para além de continuar a cultivar a poesia, dedicou-se depois a escrever crónicas, contos e romances de temática colonial, pelo que recebeu alguns prémios da antiga Agência Geral das Colónias. Está representado nas antologias: Novos Contos d'África, de Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme, 1962; Contos Portugueses do Ultramar, de Amândio César, 1969; O Corpo da Pátria, antologia poética sobre a guerra colonial, de Pinharanda Gomes, 1971; e Antologia do Conto Ultramarino, de Amândio César, 1972.
      
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Lisboa, 1997 (daqui)
   
    
Baião de Luanda

Tão velhinha e tão linda, e tão presa
nos mistérios das ondas do mar,
é Luanda uma flor, uma beleza
com perfume e encantos sem par.

De S. Paulo à Marginal
- Vem ver, meu amor! -
Luanda ao sol-pôr,
Como é sem favor, divinal!

Raparigas do Bungo e da Samba,
do Cruzeiro e da Sé, do Balão,
na Paris, Polo Norte ou Mutamba,
são a nossa maior tentação.

Nesta terra onde eu nasci
eu quero casar
e ter o meu lar
e rir e chorar
só por ti.

Pelos bailes seletos da Alta,
nos batuques tão ricos de cor,
é Luanda que dança e que salta,
numa festa de vida e amor.

Bungo, Samba e Sambizanga
ou Portas do Mar
- Tudo isto é Luanda,
cidade e quitanda
ao luar...

Tão velhinha e tão bela e fagueira,
debruçada nas ondas do mar,
É Luanda sagaz, feiticeira.
Quem cá chega, cá quer ficar!
   


Reis Ventura

sexta-feira, março 08, 2024

O dia milagroso em que Fernando Pessoa se multiplicou foi há 110 anos

(imagem daqui)
  
Especialistas garantem que esse relato sobre o ‘aparecimento' de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos é uma ficção.
O nascimento dos heterónimos, tal como Fernando Pessoa o relatou em 1935, ano que viria a ser o da sua morte, era demasiado bom para ser verdade. O ‘Dia Triunfal', que terá acontecido há 100 anos, a 8 de março de 1914, não sobrevive à análise do espólio do poeta. Além das dúvidas quanto às datas de alguns manuscritos, há cartas do amigo Mário de Sá-Carneiro que fazem referência a obras que supostamente ainda não existiriam.

No entanto, aquilo que ficou para a história da literatura de Portugal, graças à carta que Fernando Pessoa escreveu ao crítico literário e amigo Adolfo Casais Monteiro, a 13 de janeiro de 1935, é que a génese dos heterónimos - apresentada como "o fundo traço de histeria que existe em mim" - teve o seu quê de épico: "Acerquei me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim."

A acreditar no poeta, que tinha então 46 anos, Alberto Caeiro foi o primeiro heterónimo a aparecer nesse dia. Ele, "que escrevia mal o português", o que era natural em quem não fora à escola, escreveu todos os poemas de ‘O Guardador de Rebanhos'.

Depois de encontrar o mestre, voltou a si próprio, escrevendo os seis poemas de ‘Chuva Oblíqua', mas ainda faltavam os discípulos. Ricardo Reis já estava latente, mas Pessoa garante ter-lhe então descoberto o nome, "porque nessa altura já o via". Depois, "num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a ‘Ode Triunfal' de Álvaro de Campos".

Teresa Rita Lopes contrapõe a realidade dos factos a essa narrativa. "Nesse dia só escreveu dois poemas enquanto Alberto Caeiro, e a ‘Chuva Oblíqua'", garante a especialista na obra de Fernando Pessoa, que vai estar hoje, às 16h30, a falar sobre o ‘Dia Triunfal', na livraria Culsete, em Setúbal. De igual forma, Álvaro de Campos só nasceria meses depois, em junho de 1914, seguindo-se Ricardo Reis. 
 

in CM - ler notícia

O Guardador de Rebanhos

I

Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
 
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
 
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
 
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
 
Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
 
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita coisa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
 
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
 
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.


Alberto Caeiro

sábado, março 02, 2024

Luis de Montalvor morreu há 77 anos...

 
Luís de Montalvor (S. Vicente, Cabo Verde, 31 de janeiro de 1891 - Lisboa, 2 de março de 1947), pseudónimo de Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos, poeta e editor português.

 

Vida

Filho de um magistrado, aos dois meses de idade foi viver para Lisboa. Aí fez os seus estudos e iniciou a sua actividade cultural. Fundou as revistas Orpheu, em 1915, e Centauro, em 1916, e foi colaborador das revistas Atlântida (1915-1920), Contemporânea (1915-1926) e Sudoeste (1935).

Em 1933, fundou a "Editorial Ática, Lda.", com sede numa pequena loja na rua das Chagas, em Lisboa, e que a partir dos anos 40 adotou a firma de "Ática, S.A.R.L., Casa Editora".

Pouco depois da morte de Fernando Pessoa, foi Luís de Montalvor quem convenceu a família do então quase desconhecido poeta (até aí só haviam sido publicados poemas avulsos em revistas de pequena circulação e a Mensagem em livro) do valor imenso da sua obra, praticamente inédita. Os herdeiros de Pessoa confiaram então a Montalvor e a João Gaspar Simões a tarefa de inventariar o espólio literário que o escritor deixara guardado numa arca, fechada no seu quarto do apartamento da Rua Coelho da Rocha.

Durante os anos seguintes, os dois escritores, paciente e graciosamente, organizaram os manuscritos pessoanos, tendo em 1942 sido publicado pela editora Ática as Poesias de Fernando Pessoa, primeiro dos cinco volumes constituintes das Obras Completas de Fernando Pessoa – sendo os restantes: Poesias de Álvaro de Campos (1944), Odes de Ricardo Reis (1945), Mensagem (1945) e Poemas de Alberto Caeiro (1946).

Segundo Gaspar Simões, instigado por sócios mais ambiciosos, Montalvor em dezembro de 1946, inaugurou, na rua Garrett nº 2, em pleno Chiado, as instalações luxuosas e ampliadas da editora-livraria, com espaços para conferências e exposições de arte moderna, livros de arte importados, etc. Infelizmente, no pós-guerra, o frágil mundo editorial português foi sacudido por uma crise que afetou profundamente a Ática. 

 

Morte misteriosa

Decorridos escassos quatro meses do início do novo projeto comercial, a 2 de março de 1947, pelas 12 horas, junto à Estação Fluvial de Belém, foi visto o automóvel Opel, usado pela família nos seus passeios dominicais, a cair ao Tejo, perante a impotência das testemunhas que viram os seus ocupantes a debater-se aflitivamente no seu interior. Quando finalmente foi retirado do rio, já estavam mortos os sinistrados: o casal Montalvor e o seu filho único, condutor do veículo (uma "estranha criatura", no dizer de Gaspar Simões).


  


TARDE

Ardente, morna, a tarde que calcina,
como em quadrante a sombra que descora,
morre − baixo relevo que domina −
como um sol que sobre saibros se demora.

Inunda a terra a vaga de ouro: fina
chuva de sonho. Paira, ao longe, e chora
o olhar errado ao sol que já declina
sobre as palmeiras que o deserto implora.

A um zodíaco de fogo a tarde abrasa,
em terra de varão que o olhar esmalta.
− Estagnante plaino de ouro e rosas − vaza

nele a sombra, sem dor, que em nós começa
e galga, sobe, monta e vive e exalta.
E a noite, a grande noite, recomeça!
 
  
  
Luís de Montalvor

domingo, fevereiro 25, 2024

Cesário Verde nasceu há 169 anos

 
José Joaquim Cesário Verde (Lisboa, 25 de fevereiro de 1855 - Lumiar, 19 de julho de 1886) foi um poeta português, sendo considerado um dos precursores da poesia que seria feita em Portugal no século XX.
Filho do lavrador e comerciante José Anastácio Verde e de Maria da Piedade dos Santos Verde, Cesário matriculou-se no Curso Superior de Letras em 1873, mas apenas o frequentou alguns meses. Ali conheceu Silva Pinto, que ficou seu amigo para o resto da vida. Dividia-se entre a produção de poesias (publicadas em jornais, destacando-se a revista Branco e Negro, entre 1896 e 1898) e as atividades de comerciante, herdadas do pai.
Em 1877 começou a ter sintomas de tuberculose, doença que já lhe roubara o irmão e a irmã. Estas mortes inspiraram contudo um de seus principais poemas, Nós (1884).
Tenta curar-se da tuberculose, mas sem sucesso, vem a falecer no dia 19 de julho de 1886. No ano seguinte Silva Pinto organiza O Livro de Cesário Verde, compilação da sua poesia publicada em 1887.
No seu estilo delicado, Cesário empregou técnicas impressionistas, com extrema sensibilidade ao retratar a Cidade e o Campo, que são os seus cenários prediletos. Evitou o lirismo tradicional, expressando-se de uma forma mais natural.
   
 
Contrariedades

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de faltas de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve a conta na botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopeia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais duma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e em paz pela calçada abaixo,
Soluça um sol-e-dó. Chuvisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poemas às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingénuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convêm, visto que os seus leitores
Deliram por Zaccone.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua coterie;
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a réclame, a intriga, o anúncio, a blague,
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

 
  
Cesário Verde

terça-feira, fevereiro 06, 2024

Porque hoje é dia de recordar um grande Homem...

(imagem daqui)

 

António Vieira

O céu estrela o azul e tem grandeza.
Este, que teve a fama e a gloria tem,
Imperador da língua portuguesa,
Foi-nos um céu também.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

Mas não, não é luar: é luz do etéreo.
É um dia; e, no céu amplo de desejo,
A madrugada irreal do Quinto Império
Doira as margens do Tejo.

 
  
in
Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

quarta-feira, janeiro 31, 2024

Luis de Montalvor nasceu há 133 anos...



Luís de Montalvor (S. Vicente, Cabo Verde, 31 de janeiro de 1891 - Lisboa, 2 de março de 1947), pseudónimo de Luís Filipe de Saldanha da Gama da Silva Ramos, poeta e editor português
 
Vida

Filho de um magistrado, aos dois meses de idade foi viver para Lisboa. Aí fez os seus estudos e iniciou a sua atividade cultural. Fundou as revistas Orpheu, em 1915, e Centauro, em 1916, e foi colaborador das revistas Atlântida (1915-1920), Contemporânea (1915-1926) e Sudoeste (1935).

Em 1933, fundou a "Editorial Ática, Lda.", com sede numa pequena loja na rua das Chagas, em Lisboa, e que a partir dos anos 40 adotou a firma de "Ática, S.A.R.L., Casa Editora".

Pouco depois da morte de Fernando Pessoa, foi Luís de Montalvor quem convenceu a família do então quase desconhecido poeta (até aí só haviam sido publicados poemas avulsos em revistas de pequena circulação e a Mensagem em livro) do valor imenso da sua obra, praticamente inédita. Os herdeiros de Pessoa confiaram então a Montalvor e a João Gaspar Simões a tarefa de inventariar o espólio literário que o escritor deixara guardado numa arca, fechada no seu quarto do apartamento da Rua Coelho da Rocha.

Durante os anos seguintes, os dois escritores, paciente e graciosamente, organizaram os manuscritos pessoanos, tendo em 1942 sido publicado pela editora Ática as Poesias de Fernando Pessoa, primeiro dos cinco volumes constituintes das Obras Completas de Fernando Pessoa – sendo os restantes: Poesias de Álvaro de Campos (1944), Odes de Ricardo Reis (1945), Mensagem (1945) e Poemas de Alberto Caeiro (1946).

Segundo Gaspar Simões, instigado por sócios mais ambiciosos, Montalvor em dezembro de 1946, inaugurou, na rua Garrett nº 2, em pleno Chiado, as instalações luxuosas e ampliadas da editora-livraria, com espaços para conferências e exposições de arte moderna, livros de arte importados, etc. Infelizmente, no pós-guerra, o frágil mundo editorial português foi sacudido por uma crise que afetou profundamente a Ática. 

 

Morte misteriosa

Decorridos escassos quatro meses do início do novo projeto comercial, a 2 de março de 1947, pelas 12 horas, junto à Estação Fluvial de Belém, foi visto o automóvel Opel, usado pela família nos seus passeios dominicais, a cair ao Tejo, perante a impotência das testemunhas que viram os seus ocupantes a debater-se aflitivamente no seu interior. Quando finalmente foi retirado do rio, já estavam mortos os sinistrados: o casal Montalvor e o seu filho único, condutor do veículo (uma "estranha criatura", no dizer de Gaspar Simões).

Desconhecem-se os motivos da tragédia. Segundo Gaspar Simões teria sido um suicídio coletivo, motivado por dificuldades financeiras ou por algum drama familiar, aludindo a "histórias equívocas" que na época circulavam pelos maledicentes cafés lisboetas, a respeito de Montalvor e dos seus familiares.

No entanto, segundo o Diário de Lisboa desse mesmo dia, poderá ter-se tratado de um lamentável acidente. Foram os jornalistas desse diário que se dirigiram à morada na família, um enorme casarão na rua Garcia da Orta, nº 59, em Santos-o-Velho, e deram a triste notícia às duas jovens criadas, que ficaram estupefactas e tomadas pela dor. Segundo elas, nessa manhã, a patroa ter-lhes-ia recomendado que tivessem o almoço pronto para as 13.30 e o filho teria falado ao telefone com António Sérgio, combinando um jantar para essa noite. Além disso, no interior do veículo foi encontrado um saco com géneros alimentícios. As criadas apenas conheciam da família das vítimas uma tia muito idosa, Cândida da Silva Ramos.

Um técnico, citado pelo Diário de Lisboa de 3 de março, referiu que aquele modelo de carro teria o pedal do acelerador muito próximo do pedal do travão e que alguém que usasse calçado largo poderia muito bem ter momentaneamente acelerado o veículo em vez de o travar. Os cadáveres estiveram para ser autopsiados, mas houve dispensa, a instâncias de amigos da família. No dia 5, foi celebrada missa na igreja dos Mártires, e o enterro foi no cemitério dos Prazeres. Nesse mesmo dia foi realizada uma peritagem ao automóvel.

   
  

 

ENTARDECER

Sol-posto ungindo o mar: incensos de ouro!

Recolhe funda a tarde em sonho e mágoa.
Surdina fluida: anda o silêncio a orar –
E há crepúsculos de asas e, na água,
O céu é mármore extático a cismar!

E nas faces marmóreas dos rochedos
Esboçam-se perfis,
- Cintilações,
Penumbra de segredos!

Ó painéis de nuvens sobre a terra,
Ogivas delirantes
Na água refractando…
Encheis de sombra o mar de espumas rasas,
Iniciando
A hora pânica das asas!

E, à meia luz da tarde,
Na areia requeimada,
São vultos sonolentos
As proas dos navios…

Ó tristeza dos balões
Iluminando,
Na água prateada,
Os pegos e baixios…

Dormentes constelações
Que, em fundos lacustres
E musgosos,
Pondes reverberações
Em nossos olhos ansiosos.

Ó tardes de aquático esplendor,
Descendo em meu olhar!

Num sonho de regresso,
Numa ânsia de voltar,
Em mim todo me esqueço
E fico-me a cismar.

A tarde é toda um sonho moribundo.
É já olor da cor que amorteceu.
O céu vive no mar: sono profundo.
A asa do rumor no ar adormeceu!
 

Luís de Montalvor

domingo, janeiro 21, 2024

João Villaret deixou-nos há 63 anos...

(imagem daqui)
         
João Henrique Pereira Villaret (Lisboa, 10 de maio de 1913 - Lisboa, 21 de janeiro de 1961) foi um ator, encenador e declamador português.

João Villaret nasceu em Lisboa, em 1913, filho do médico Frederico Villaret e de Josefina Gouveia da Silva Pereira. Frequentou o colégio inglês na Rua Marquês de Abrantes e depois o Liceu de Passos Manuel, onde foi bom aluno. Desde cedo revelou interesse pelas artes. Aos 15 anos ingressou no Conservatório Nacional de Lisboa. Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro tiveram um papel preponderante na sua iniciação teatral. Em 1930 concluiu o curso e a 16 de outubro de 1931 estreava-se interpretando um papel na peça Leonor Teles, de Marcelino Mesquita.

Trabalhou no teatro, cinema e foi um grande declamador de poesia, a sua maior paixão. Era um actor ecléctico, pois além do teatro clássico também se dedicou ao teatro de revista. Fez várias digressões a África e ao Brasil, onde esteve sete vezes. Nos últimos anos, aos domingos, tinha um programa na RTP, onde declamava poesia e contava histórias curiosas do mundo cultural. Num desses episódios referiu que o seu amigo António Botto o apresentou a Fernando Pessoa, encontro que muito o impressionou.

Villaret era diabético, mas era avesso a tratamentos e dietas. Em 1958, quando esteve em Nova Lisboa consultou um calista que ao extrair-lhe uma calosidade lhe provocou uma ferida num pé, o que viria a ter consequências funestas. Viria a morrer de insuficiência renal em 1961, aos 47 anos.
  
Teatro
Depois de frequentar o Conservatório Nacional de Teatro, começou por integrar o elenco da companhia de teatro lisboeta Amélia Rey Colaço-Robles Monteiro.
Mais tarde, fez parte da companhia teatral Os Comediantes de Lisboa, fundada em 1944 por António Lopes Ribeiro e o seu irmão Francisco, mais conhecido por Ribeirinho.
Teve uma interpretação considerada antológica na peça Esta Noite Choveu Prata, de Pedro Bloch, em 1954, no extinto Teatro Avenida, em Lisboa.
  
Cinema
No cinema, Villaret surge em:
   
Declamador

Nos anos 50, com o aparecimento da televisão, transpõe para este meio de comunicação a experiência que adquirira no palco e em cinema, assim como em programas radiofónicos. Aos domingos declamava na RTP, com graça e paixão, poemas dos maiores autores nacionais.
Ficaram célebres, entre outras, as suas interpretações de:
Encontram-se no mercado edições, em CD, do trabalho de Villaret como declamador.
  
Música

Na música, Villaret também deu cartas, sendo criador de grandes sucessos, como "Rosa Araújo", "Santo António" (proibidos pela Censura do Estado Novo) e "Sinfonia do Ribatejo", na revista "Não Faças Ondas", em 1956, e do poema-canção "Recado a Lisboa", que até hoje predomina como um verdadeiro clássico da história da Música Portuguesa.

A sua mais conhecida obra, devido à sua originalidade, é a seguinte:

Fado falado, de Nelson de Barros, com versos de Aníbal de Nazaré, criado pelo próprio na revista "Tá Bem ou Não 'Tá?" (1947), e satirizada com mestria nos anos 50, onde se pode ouvir esta frase emblemática: «Se o fado se canta e chora, também se pode falar».
   
Homenagens
A 2 de abril de 1960 foi feito Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada

Em Lisboa o Teatro Villaret recebeu o seu nome como homenagem pela sua carreira.

Em Loures há uma escola com o nome de João Villaret. A escola ensina crianças desde o 5.º até ao 9.º ano.

 
   

   


sábado, janeiro 20, 2024

El-Rei D. Sebastião nasceu há 470 anos...

      
D. Sebastião (Lisboa, 20 de janeiro de 1554Alcácer-Quibir, 4 de agosto de 1578), apelidado de "o Desejado" e "o Adormecido", foi o Rei de Portugal e dos Algarves de 1557 até à sua morte. Era filho de João Manuel, Príncipe de Portugal, e Joana da Áustria. Ele ascendeu ao trono aos três anos após a morte de seu avô o rei João III, com uma regência sendo instaurada durante a sua menoridade, liderada primeiro pela sua avó, a rainha Catarina da Áustria, e depois pelo seu tio-avô, o cardeal Henrique de Portugal.
Sebastião assumiu o governo aos catorze anos de idade em 1568, manifestando grande fervor religioso e militar. Solicitado a cessar as ameaças às costas portuguesas e motivado a reviver as glórias da chamada Reconquista, decidiu montar um esforço militar em Marrocos, planeando uma cruzada, após Mulei Mohammed ter solicitado a sua ajuda para recuperar o trono. A derrota na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578 levou ao desaparecimento de Sebastião em combate e da nata da nobreza, iniciando a crise dinástica de 1580 que levou à perda da independência para a Espanha e ao nascimento do mito do Sebastianismo.

  
(imagem daqui)
    
 
A ÚLTIMA NAU

Levando a bordo El-Rei D. Sebastião,
E erguendo, como um nome, alto o pendão
Do Império,
Foi-se a última nau, ao sol aziago
Erma, e entre choros de ânsia e de pressago
Mistério.

Não voltou mais. A que ilha indescoberta
Aportou? Voltará da sorte incerta
Que teve?
Deus guarda o corpo e a forma do futuro,
Mas Sua luz projecta-o, sonho escuro
E breve.

Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna,
E em mim, num mar que não tem tempo ou ’spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.

Não sei a hora, mas sei que há a hora,
Demore-a Deus, chame-lhe a alma embora
Mistério.
Surges ao sol em mim, e a névoa finda:
A mesma, e trazes o pendão ainda
Do Império.
  
 
  
in Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

domingo, janeiro 07, 2024

Poema para um Rei...

(imagem daqui)

 

D. DINIS


Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.



9-2-1934


in Mensagem, Fernando Pessoa

domingo, dezembro 24, 2023

Poruqe um Herói nunca morre, enquanto for recordado...

(imagem daqui)

 

 

Ascensão de Vasco da Gama
 
Os Deuses da tormenta e os gigantes da terra
Suspendem de repente o ódio da sua guerra
E pasmam. Pelo vale onde se ascende aos céus
Surge um silêncio, e vai, da névoa ondeando os véus,
Primeiro um movimento e depois um assombro.
Ladeiam-no, ao durar, os medos, ombro a ombro,
E ao longe o rastro ruge em nuvens e clarões.
 
Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta
Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,
O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.
 
  
in Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

quinta-feira, dezembro 14, 2023

Poema para recordar uma infâmia...


 

À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI SIDÓNIO PAIS

 

Longe da fama e das espadas,
Alheio às turbas ele dorme.
Em torno há claustros ou arcadas?
Só a noite enorme.

Porque para ele, já virado
Para o lado onde está só Deus,
São mais que Sombra e que Passado
A terra e os céus.

Ali o gesto, a astúcia, a lida,
São já para ele, sem as ver,
Vácuo de acção, sombra perdida,
Sopro sem ser.

Só com sua alma e com a treva,
A alma gentil que nos amou
Inda esse amor e ardor conserva?
Tudo acabou?

No mistério onde a Morte some
Aquilo a que a alma chama a vida,
Que resta dele a nós — só o nome
E a fé perdida?

Se Deus o havia de levar,
Para que foi que no-lo trouxe
Cavaleiro leal, do olhar
Altivo e doce?

Soldado-rei que oculta sorte
Como em braços da Pátria ergueu,
E passou como o vento norte
Sob o ermo céu.

Mas a alma acesa não aceita
Essa morte absoluta, o nada
De quem foi Pátria, e fé eleita,
E ungida espada.

Se o amor crê que a Morte mente
Quando a quem quer leva de novo
Quão mais crê o Rei ainda existente
O amor de um povo!

Quem ele foi sabe-o a Sorte,
Sabe-o o Mistério e a sua lei
A Vida fê-lo herói, e a Morte
O sagrou Rei!

Não é com fé que nós não cremos
Que ele não morra inteiramente.
Ah, sobrevive! Inda o teremos
Em nossa frente.

No oculto para o nosso olhar,
No visível à nossa alma,
Inda sorri com o antigo ar
De força calma.

Ainda de longe nos anima,
Inda na alma nos conduz
Gládio de fé erguido acima
Da nossa cruz!

Nada sabemos do que oculta
O véu igual de noite e dia,
Mesmo ante a Morte a Fé exulta:
Chora e confia.

Apraz ao que em nós quer que seja
Qual Deus quis nosso querer tosco,
Crer que ele vela, benfaeja
Sombra connosco.

Não sai da nossa alma a fé
De que, alhures que o mundo e o fado,
Ele inda pensa em nós e é
O bem-amado.

Tenhamos fé porque ele foi.
Deus não quer mal a quem o deu.
Não passa como o vento o herói
Sob o ermo céu.

E amanhã, quando queira a Sorte,
Quando findar a expiação,
Ressurrecto da falsa morte!
Ele já não.

Mas a ânsia nossa que encarnara,
A alma de nós de que foi braço,
Tornara, nova forma clara,
Ao tempo e ao espaço.

Tornará feito qualquer outro,
Qualquer cousa de nós com ele;
Porque o nome do herói morto
Inda compele,

Inda comanda, e a armada ida
Para os campos da Redenção,
Às vezes leva à frente, erguida
Espada, a Ilusão.

E um raio só de ardente amor,
Que emana só do nome seu,
Dê sangue a um braço vingador,
Se esmoreceu.

Com mais armas que com Verdade
Combate a alma por quem ama.
É lenha só a Realidade.
A fé é a chama.

Mas ai, que a fé já não tem forma
Na matéria e na cor da Vida,
E, pensada, em dor se transforma
E a fé perdida!

Pra que deu Deus a confiança
A quem não ia dar o bem?
Morgado da nossa esperança,
A Morte o tem!

Mas basta o nome e basta a glória
Para ele estar connosco, e ser
Carnal presença de memória
A amanhecer;

Espectro real feito de nós,
Da nossa saudade e ânsia,
Que fala com oculta voz
Na alma, a distância;

E a nossa própria dor se torna
Uma vaga ânsia, um esperar vago,
Como a erma brisa que transtorna
Um ermo lago.

Não mente a alma ao coração.
Se Deus o deu, Deus nos amou.
Porque ele pôde ser, Deus não
Nos desprezou.

Rei-nato, a sua realeza,
Por não podê-la herdar dos seus
Avós, com mística inteireza
A herdou de Deus;

E, por directa consonância
Com a divina intervenção,
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia
De salvação.

Toldou-o a Sorte que o trouxera
Outra vez com nocturno véu.
Deus p'ra que no-lo deu, se era
P'ra o tornar seu?

Ah, tenhamos mais fé que a esp'rança!
Mais vivo que nós somos, fita
Do Abismo onde não há mudança
A terra aflita.

E se assim é; se, desde o Assombro
Aonde a Morte as vidas leva,
Vê esta pátria, escombro a escombro,
Cair na treva;

Se algum poder do que tivera
Sua alma, que não vemos, tem,
De longe ou perto — por que espera?
Por que não vem?

Em nova forma ou novo alento,
Que alheio pulso ou alma tome,
Regresse como um pensamento,
Alma de um nome!

Regresse sem que a gente o veja,
Regresse só que a gente o sinta —
Impulso, luz, visão que reja
E a alma pressinta!

E qualquer gládio adormecido,
Servo do oculto impulso, acorde,
E um novo herói se sinta erguido
Porque o recorde!

Governa o servo e o jogral.
O que íamos a ser morreu.
Não teve aurora a matinal
Estrela do céu.

Vivemos só de recordar.
Na nossa alma entristecida
Há um som de reza a invocar
A morta vida;

E um místico vislumbre chama
O que, no plaino trespassado,
Vive ainda em nós, longínqua chama —
O DESEJADO.

Sim, só há a esp'rança, como aquela
- E quem sabe se a mesma? — quando
Se foi de Aviz a última estrela
No campo infando.

Novo Alcácer-Kibir na noite!
Novo castigo e mal do Fado!
Por que pecado novo o açoite
Assim é dado?

Só resta a fé, que a sua memória
Nos nossos corações gravou,
Que Deus não dá paga ilusória
A quem amou.

Flor alta do paul da grei,
Antemanhã da Redenção,
Nele uma hora encarnou el-rei
Dom Sebastião.

O sopro de ânsia que nos leva
A querer ser o que já fomos,
E em nós vem como em uma treva,
Em vãos assomos,

Bater à porta ao nosso gesto,
Fazer apelo ao nosso braço,
Lembrar ao sangue nosso o doesto
E o vil cansaço,

Nele um momento clareou,
A noite antiga se seguiu,
Mas que segredo é que ficou
No escuro frio?

Que memória, que luz passada
Projecta, sombra, no futuro,
Dá na alma? Que longínqua espada
Brilha no escuro?

Que nova luz virá ralar
Da noite em que jazemos vis?
Ó sombra amada, vem tornar
A ânsia feliz.

Quem quer que sejas, lá no abismo
Onde a morte a vida conduz,
Sê para nós um misticismo
A vaga luz.

Com que a noite erma inda vazia
No frio alvor da antemanhã
Sente, da esp'rança que há no dia,
Que não é vã.

E amanhã, quando houver a Hora,
Sendo Deus pago, Deus dirá
Nova palavra redentora.
Ao mal que há,

E um novo verbo ocidental
Encarnado em heroísmo e glória,
Traga por seu broquel real
Tua memória!

Precursor do que não sabemos,
Passado de um futuro a abrir
No assombro de portais extremos
Por descobrir,

Sê estrada, gládio, fé, fanal,
Pendão de glória em glória erguido!
Tornas possível Portugal
Por teres sido!

Não era extinta a antiga chama
Se tu e o amor puderam ser.
Entre clarins te a glória aclama,
Morto a vencer!

E, porque foste, confiando
Em QUEM SERÁ porque tu foste,
Ergamos a alma, e com o infando
Sorrindo arroste,

Até que Deus o laço solte
Que prende à terra a asa que somos,
E a curva novamente volte
Ao que já fomos,

E no ar de bruma que estremece
(Clarim longínquo matinal!)
O DESEJADO enfim regresse
A Portugal!



Fernando Pessoa

sábado, dezembro 09, 2023

D. Pedro, o Infante das Sete Partidas, nasceu há 631 anos

O Infante D. Pedro, 1º Duque de Coimbra, no Padrão dos Descobrimentos 


D. Pedro, infante de Portugal, 1º Duque de Coimbra, (Lisboa, 9 de dezembro de 1392Alfarrobeira, Vialonga, 20 de maio de 1449) foi um príncipe da dinastia de Avis, filho do rei D. João I e da rainha Filipa de Lencastre. Entre 1439 e 1448 foi regente de Portugal.
Devido às suas viagens ao estrangeiro, ficou conhecido como o Infante das Sete Partidas. Tendo recebido nelas o feudo de Treviso, com o título de Duque de Treviso, pelo imperador Segismundo da Hungria e investido cavaleiro da Ordem da Jarreteira pelo seu tio, Henrique IV de Inglaterra.
Pedro foi, desde a nascença, um dos filhos favoritos de João I, que lhe proporcionou uma educação esmerada e excecional numa era em que os grandes senhores eram pouco mais, senão mesmo, analfabetos. Muito próximo dos irmãos Duarte e João, Pedro cresceu num ambiente tranquilo e livre de intrigas. Em 1415, acompanha o pai na conquista de Ceuta e é feito cavaleiro no dia seguinte à tomada da cidade, na recém consagrada mesquita. É nesta altura que lhe é conferido o Ducado de Coimbra, tornando-se, com o irmão Henrique, nos dois primeiros duques criados em Portugal.
Em 1429, Pedro casa com a princesa Isabel de Aragão, condessa de Urgel, em determinada altura herdeira de Aragão, com quem constitui, segundo as fontes, uma união de amor. Na morte de Duarte, seu Rei e irmão mais velho, Pedro é preterido na regência de Afonso V de Portugal a favor da rainha mãe, Leonor de Aragão. A escolha do falecido rei não era, no entanto, popular e a fação opositora de Leonor em breve saiu às ruas. Um motim em Lisboa foi evitado in extremis, convocando-se uma reunião das cortes para normalizar a situação (Cortes de 1439). O resultado do encontro foi a nomeação de Pedro para a regência do pequeno Rei (dezembro de 1439), deixando a classe média de burgueses e mercadores deveras satisfeita. No entanto, dentro da aristocracia, em particular D. Afonso, conde de Barcelos (meio irmão de Pedro), preferia-se a mais maleável Leonor de Aragão e desconfiava-se do valor do Infante. Começa então uma guerra surda de influências e Afonso consegue transformar-se no tio favorito de D. Afonso V.
Em 1443, num gesto de reconciliação, Pedro torna o meio irmão Afonso no primeiro duque de Bragança e as relações entre os dois parecem regressar à normalidade. Indiferente às intrigas, Pedro continua a sua regência e o país prospera sob a sua influência. É durante este período que se concedem os primeiros subsídios à exploração do oceano Atlântico, organizada pelo Infante D. Henrique.
Finalmente, a 9 de junho de 1448, Afonso V atinge a maioridade e Pedro entrega o controlo de Portugal ao Rei, verificando-se o grau de influência do Duque de Bragança sobre Afonso. A 15 de setembro, Afonso V anula todos os éditos de Pedro, começando, contra si próprio, pelos que determinavam a concentração do poder na pessoa do rei. A única coisa que Afonso parece não aceitar é a separação da rainha Isabel, por muito a estimar. No ano seguinte, sob acusações que haveria mais tarde de descobrir falsas, Afonso V declara o infante Pedro um rebelde. A situação torna-se insustentável, e começa uma breve guerra civil, pois, a 20 de maio de 1449, ocorreu a batalha de Alfarrobeira, em Forte da Casa, perto de Alverca, durante a qual o infante morreu. As condições exatas da sua morte continuam a causar debate: aparentemente Pedro morreu em combate, mas a hipótese de um assassínio disfarçado na batalha nunca foi descartada.
Com a morte de Pedro, Portugal caiu nas mãos de Afonso, 1º Duque de Bragança, com cada vez mais poder sobre o rei. No entanto, o período da sua regência nunca foi esquecido e D. Pedro foi citado muitas vezes pelo rei D. João II de Portugal (seu neto) como sendo a sua maior influência. A perseguição implacável que D. João II moveu aos Braganças foi talvez em resposta às conspirações que causaram a queda de um dos maiores príncipes da Ínclita Geração.

Do seu casamento com D. Isabel de Aragão, condessa de Urgel, filha de Jaime II de Urgel e da infanta Isabel de Aragão e Fortiá, teve os seguintes filhos:

Bandeira pessoal do Infante D. Pedro, com a divisa: «Désir»

 
D. Pedro no Painel dos Cavaleiros, no políptico de S. Vicente

   

D. Pedro, Regente de Portugal

Claro em pensar, e claro no sentir,
É claro no querer;
Indiferente ao que há em conseguir
Que seja só obter;
Dúplice dono, sem me dividir,
De dever e de ser —

Não me podia a Sorte dar guarida
Por eu não ser dos seus.
Assim vivi, assim morri, a vida,
Calmo sob mudos céus,
Fiel à palavra dada e à ideia tida.
Tudo mais é com Deus!

   

in Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

quarta-feira, dezembro 06, 2023

El-Rei D. Afonso Henriques morreu há 838 anos...

   
El-Rei D. Afonso I de Portugal, mais conhecido por D. Afonso Henriques (Guimarães, Coimbra ou Viseu, circa 1109 - Coimbra, 6 de dezembro de 1185) foi o fundador do Reino de Portugal e o seu primeiro rei, com o cognome de O Conquistador, O Fundador ou O Grande, pela fundação do reino e pelas muitas conquistas. Era filho de D. Henrique de Borgonha e de D.ª Teresa de Leão, condes de Portucale, um condado vassalo do reino de Leão.
   

 

in Wikipédia

 

 (imagem daqui)

 

D. Afonso Henriques 

 

Pai, foste cavaleiro. 

Hoje a vigília é nossa. 

Dá-nos o exemplo inteiro 

E a tua inteira força! 

 

Dá, contra a hora em que, errada, 

Novos infiéis vençam, 

A bênção como espada, 

A espada como bênção! 

 

   

in Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

sexta-feira, dezembro 01, 2023

Poesia para recordar um Herói...

D. João IV por Peter Paul Rubens (circa 1628)

 

O Encoberto 

   

Que símbolo fecundo
Vem na aurora ansiosa?
Na Cruz morta do Mundo
A Vida, que é a Rosa.

Que símbolo divino
Traz o dia já visto?
Na Cruz, que é o Destino,
A Rosa, que é o Cristo.

Que símbolo final
Mostra o sol já desperto?
Na Cruz morta e fatal
A Rosa do Encoberto.

 

in Mensagem (1934) - Fernando Pessoa

Aleister Crowley morreu há 76 anos...

 
Aleister Crowley, ou Edward Alexander Crowley (Royal Leamington Spa, 12 de outubro de 1875 - Hastings, 1 de dezembro de 1947), foi um membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada e influente ocultista britânico, responsável pela fundação da doutrina (ou filosofia; dependendo do ponto de vista) Thelema. Foi o co-fundador da A∴A∴ e mais tarde um líder da O.T.O., sendo conhecido hoje em dia por seus escritos sobre magia, especialmente o Livro da Lei, o texto sagrado e central da Thelema, apesar de ter escrito sobre outros assuntos esotéricos como a Cabala e Tarot.
Crowley também era mago, hedonista, e crítico social. Em muita de suas façanhas ele "iria contra os valores morais e religiosos do seu tempo", defendendo a liberdade pessoal e espiritual baseado em sua regra de "Faz o que tu queres". Por causa disso, ganhou larga notoriedade em sua vida, e foi declarado pela imprensa do tempo como "O homem mais perverso do mundo." Além das suas atividades esotéricas era também um premiado jogador de xadrez, um alpinista, poeta e dramaturgo. Em 2001, um inquérito da BBC descrevia Crowley como sendo o septuagésimo terceiro maior britânico de todos os tempos, por influenciar e ser referenciado por numerosos escritores, músicos e cineastas,  incluindo Jimmy Page, Alan Moore, Bruce Dickinson, Raul Seixas, Marilyn Manson, Kenneth Anger, David Bowie, Fernando Pessoa e Ozzy Osbourne. Ele também foi citado como influência principal de muitos grupos e indivíduos influentes do esoterismo ocidental da posteridade, incluindo vultos como Kenneth Grant e Gerald Gardner.
      
(...)
  
Os seus últimos anos, a partir de 1945, foram vividos em Hastings, onde uma série de novos discípulos continuaram a receber instruções; assim Kenneth Grant, John Symonds, Grady McMurty, conhecem-no. Desta época, vem a sua última obra, consistindo numa coletânea de cartas dirigidas a uma jovem discípula, que foram publicadas bem mais tarde, após a sua morte, como Magick Without Tears.
No primeiro dia de dezembro de 1947, aos 72 anos, Aleister Crowley, serenamente segundo alguns, exultante segundo outros, e ainda perplexo, segundo um biógrafo, falece, vítima de bronquite crónica e complicações cardíacas.
Quatro dias depois, no crematório de Brighton, é realizada a cerimónia que ficou conhecida como "O Último Ritual", com a leitura de trechos da Missa Gnóstica e do seu famoso Hino a Pã.
  
 
Hino a Pã

Vibra do cio subtil da luz,
Meu homem e afã
Vem turbulento da noite a flux
De Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Do mar de além
Vem da Sicília e da Arcádia vem!
Vem como Baco, com fauno e fera
E ninfa e sátiro à tua beira,
Num asno lácteo, do mar sem fim,
A mim, a mim!
Vem com Apolo, nupcial na brisa
(Pegureira e pitonisa),
Vem com Artêmis, leve e estranha,
E a coxa branca, Deus lindo, banha
Ao luar do bosque, em marmóreo monte,
Manhã malhada da àmbrea fonte!
Mergulha o roxo da prece ardente
No ádito rubro, no laço quente,
A alma que aterra em olhos de azul
O ver errar teu capricho exul
No bosque enredo, nos nás que espalma
A árvore viva que é espírito e alma
E corpo e mente - do mar sem fim
(Iô Pã! Iô Pã!),
Diabo ou deus, vem a mim, a mim!
Meu homem e afã!
Vem com trombeta estridente e fina
Pela colina!
Vem com tambor a rufar à beira
Da primavera!
Com frautas e avenas vem sem conto!
Não estou eu pronto?
Eu, que espero e me estorço e luto
Com ar sem ramos onde não nutro
Meu corpo, lasso do abraço em vão,
Áspide aguda, forte leão -
Vem, está fazia
Minha carne, fria
Do cio sozinho da demonia.
À espada corta o que ata e dói,
Ó Tudo-Cria, Tudo-Destrói!
Dá-me o sinal do Olho Aberto,
E da coxa áspera o toque erecto,
Ó Pã! Iô Pã!
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã Pã! Pã.,
Sou homem e afã:
Faze o teu querer sem vontade vã,
Deus grande! Meu Pã!
Iô Pã! Iô Pã! Despertei na dobra
Do aperto da cobra.
A águia rasga com garra e fauce;
Os deuses vão-se;
As feras vêm. Iô Pã! A matado,
Vou no corno levado
Do Unicornado.
Sou Pã! Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
Sou teu, teu homem e teu afã,
Cabra das tuas, ouro, deus, clara
Carne em teu osso, flor na tua vara.
Com patas de aço os rochedos roço
De solstício severo a equinócio.
E raivo, e rasgo, e roussando fremo,
Sempiterno, mundo sem termo,
Homem, homúnculo, ménade, afã,
Na força de Pã.
Iô Pã! Iô Pã Pã! Pã!
   


Aleister Crowley - tradução de Fernando Pessoa